segunda-feira, 28 de junho de 2010

Dose de cavalo

No Irão fui mordido no braço por um cavalo. Na praça Naghsh-i-Jahan, em Esfahan, ao contrário do resto do grupo resolvi passar à frente do bicho sem prever que poderia assustá-lo (meio milésimo de segundo antes tinha até pensado em fazer-lhe uma festa no focinho e ainda hoje estou para perceber o que me impediu de levantar a mão). Este é um dos locais mais turísticos de Esfahan, uma enorme nave rectangular com jardins, lagos e relvados ao centro, rodeada uterinamente por arcadas medievais, de onde irrompem, a Este, a Mesquita Sheikh Loft Allah e, a Sul, a Mesquita Shah. Uma das ofertas turísticas em Naghsh-i-Jahan é a viagem de charrete puxada por cavalos que, debaixo de um sol abrasador, correm em círculo o dia inteiro instigados à vergastada pelos donos. Justifica-se que o cavalo tenha descarregado o mau-humor no turista incauto que se lhe atravessou abruptamente à frente. O problema é que eu peso setenta e poucos quilos, mas ele puxa vários como eu por dia e tinha uma dentição impecável. Acabou por não ser nada de mais, apenas um arranhão e o susto. Ainda troquei uns argumentos com o condutor da charrete e depois toma lá um toalhete e limpa a ferida, olha que até rasgou a t-shirt e tudo, fez sangue, pá, estás a ver isto?... Foram no máximo dez passos e trinta segundos nesta azáfama até pararmos e levantarmos os olhos. À nossa volta amontoara-se uma pequena multidão de iranianos. Estavam entre o preocupado, o curioso e até o divertido, já que lá atrás consegui vislumbrar uma senhora sorridente a tirar uma fotografia a todo aquele aparato connosco lá no meio. Uma outra senhora aproximou-se e, com a ajuda do Ali, um amigo iraniano que nos acompanhava, conseguimos perceber que era médica e que me aconselhava a levar a vacina da raiva.

Praça Naghsh-i-Jahan, em Esfahan

A partir deste momento tem início uma viagem dentro da própria viagem: o roteiro dos centros de saúde da Ásia Central. O primeiro que visitei nesse mesmo dia foi o de Esfahan, onde fiquei a saber que a vacina da raiva é administrada em cinco doses espaçadas por períodos de tempo diferentes. Feitas as contas, a segunda dose seria ainda no Irão, em Shiraz, a terceira no Uzebequistão, em Bukhara, e as duas últimas já em Portugal. Importa sublinhar que a quarta dose, em Portugal, seria tomada já com algum atraso, uma vez que os últimos dias de viagem foram passados no meio das montanhas do Quirguistão, longe de qualquer centro urbano. As duas vacinas no Irão foram suaves e administrativamente fáceis e rápidas. Logo nesse primeiro centro de saúde, em Esfahan, o médico entregou-me uma espécie de boletim de vacinas. Estava escrito em farsi, por isso o médico apontou numa folha de rascunho, em caracteres latinos, as datas das restantes tomas para que eu não me perdesse nas contas.
Em Shiraz, foi fácil e rápido, mostro o cartão e levo a vacina. Já em Bukhara, no Uzebequistão, um país satélite da ex-URSS, sou atendido por um médico russo que não falava uma palavra de inglês. Depois de muita gesticulação hípica, de tentativas para imitar um relinchar raivoso e de alguns telefonemas para que o dono do hotel onde estávamos instalados fizesse de intérprete, lá nos entendemos minimamente. Seguiu-se uma inquirição sobre todos os meus dados pessoais, anotados num relatório que ele assinou, eu assinei e ele carimbou. E tal não é o meu espanto quando me pede também o boletim de vacinas iraniano, bem como a tal folha de rascunho anexa, para as rubricar e carimbar com igual solenidade – é claro que depois desta liturgia administrativa, aqueles dois pedaços de papel ascenderam ao panteão dos meus mais queridos troféus de viagem. Ao passar para a sala de vacinação temi o pior quando vejo entrar uma enfermeira russa, mais farta de pêlos nas pernas do que eu, envergando máscara, luvas e a remexer num frasco de éter com um algodão seguro por umas pinças... mas ficou aquém do imaginário e até foi meiguinha. Em resumo, nestes três centros de saúde, e apesar de algum excesso de zelo e de pêlo, nunca perdi mais de meia-hora para me despachar.

Com a Maria Rita resultou não sei porquê...

E eis que chego ao meu país. Primeira etapa, o centro de saúde e a manhã inteira à espera. A médica que me atendeu não sabia como era administrada a vacina da raiva. Ao que parece a doença está praticamente erradicada no nosso país, por isso um caso destes é já algo exótico. Eu explico-lhe que são cinco inoculações espaçadas por intervalos de tempo precisos, que já tinha levado três, que precisava agora de levar a quarta e que já estava com dois dias de atraso. Talvez no Instituto de Medicina Tropical, diz-me. Mas não, lá também não era. Isso agora só no Hospital de S. Maria, diz-me a funcionária. Devo ter corrido todos os balcões do Hospital e ninguém sabia como resolver a minha situação. Da urgência para as consultas, das consultas de volta para as urgências, tira a senha do atendimento geral, depois tira outra senha qualquer e assim sucessivamente. E sempre, em todos os balcões, o mesmo ar de estranheza na cara das funcionárias perante a minha condição clínica e o respectivo vazio administrativo. Uma das "pérolas" deste processo bizarro foi o momento em que uma das funcionárias me aconselha a ir participar o sucedido à polícia. O silêncio que se seguiu da minha parte tentando perceber se a senhora estava de facto a falar a sério, rapidamente passou a uma esforçadíssima tentativa para não me destrambelhar a rir à frente dela. Foram várias as vezes que apresentei, com indisfarçável orgulho, o boletim de vacinas iraniano e também, claro, a folha de rascunho carimbada no Uzebequistão. A dada altura fazia-o já como forma de manter a sã loucura de só eu saber o que eles significavam: eu não só precisava, como agora queria a vacina. Finalmente uma outra funcionária aconselha-me a apanhar o elevador 15 e a ir ao quinto andar que lá talvez me resolvessem a situação. É o piso de isolamento para as doenças infecto-contagiosas graves. Lá explico pela enésima vez a situação e pedem-me para aguardar. Muito tempo depois aparece um médico de ar despachado que, com a maior das naturalidades, preenche uma folha e diz-me para ir ao piso zero onde fazem as vacinas. Isto passou-se no corredor em casual estilo ad-hoc, como que frisando a arbitrariedade de por acaso ter aparecido um médico porreiro que até me desenrascou - sim, estou em Portugal. Saturado e já sem o nível de ironia que permite suportar a realidade que ultrapassa a ficção, dirijo-me ao piso zero. Hoje não é dia de vacinação, tem de voltar amanhã. Não sei o que viu a funcionária na minha expressão (seria raiva?), mas lá se encontrou uma enfermeira que me administrou a quarta dose. Também ela muito porreira.

domingo, 20 de junho de 2010

Acho que vou comprar...

Na Assírio & Alvim.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

A rotina rame-rame roeu a rolha da rota

O despertador toca de manhã dentro da realidade e volta tudo ao mesmo. Exactamente a mesmíssima coisa sem tirar nem pôr. Rame-rame, rotina, repetição. (A mim é aqui que me apetece trincar o mundo logo de manhã, Katilíssima.) Para quem veio de uma realidade paralela, a percorrer os trilhos da Rota da Seda como se vagueasse por fotogramas misturados num qualquer baú perdido, o regresso é uma ideia vaga. Imaginem a seguinte metáfora gráfica, em estilo BD: sou um cartoon enorme sobre o mapa mundo, a dar um passo da Ásia Central para Portugal; mas o passo que está lá atrás tem cor, enquanto que o pé e a metade do corpo que estão aqui aparecem ainda a tracejado incolor.
O meu espírito para esta viagem foi como uma folha em branco. Dos dois lados, o meu e o do grupo. Prontos a serem preenchidos com o que acontecesse, sem margens, linhas, quadrículas, regras, pontuação, nada. Totalmente livre, portanto. E foi com essa liberdade inteira que a folha se encheu. E eu ainda estou mergulhado nessa sopa caleidoscópica de episódios, a ouvir as gargalhadas da grupeta canalha, a cruzar-me com asiáticos sorridentes, a saborear mais um kebab de galinha ou a subir para o dorso de um cavalo no Quirguistão, sentindo-lhe o odor intenso a pele e cabedal enquanto o lago se espraia no horizonte à frente dos meus olhos até ao limite dos picos nevados. E isto é só um exemplo do que me acontece de cada vez que fecho os olhos.

Percorremos 5.904 Km

Irão
Teerão - Esfahan: 450 Km
Esfahan - Shiraz: 487 Km
Shiraz - Persepolis (x2): 144 Km
Shiraz - Mashad: 1.452 Km

Irão - Turcomenistão
Mashad - Ashgabat: 276 Km
Ashgabat - Darvaza: 262 Km

Turcomenistão - Uzebequistão
Darvaza - Nukus: 309 Km
Nukus - Bukhara: 556 Km
Bukhara - Samarkand: 272 Km
Samarkand - Tashkent: 276 Km

Uzebequistão - Quirguistão
Tashkent - Bishkek: 584 Km
Bishkek - Bokonbayevo: 259 Km

Quirguistão - Cazaquistão
Bokonbayevo - Almaty: 577 Km

TOTAL: 5.904 Km

"Cratiria"

Cratera incandescente no Deserto de Karakum, perto de Darvaza, no Turcomenistão.

"Cratiria"

Cratera incandescente no Deserto de Karakum, perto de Darvaza, no Turcomenistão.

sábado, 24 de abril de 2010

Gente boa - Hassan Sabbah

A lenda dos "Assassinos" ficou conhecida na Europa através dos relatos dos cruzados e de Marco Pólo. Pensa-se que Hassan Sabbah nasceu em Revy (actuais subúrbios de Teerão) por volta de 1040. As suas crenças e ensinamentos são algo obscuros e a sua enorme biblioteca no castelo de Alamut foi destruída. No entanto sabe-se que ele ensinava os seus seguidores a conciliar as suas crenças xiitas com predicados imaelitas muito maleáveis, bem como a proteger os seus territórios a todo o custo. Qualquer figura sunita, política ou religiosa, que se lhe opusesse seria certamente assassinada pelos seus guerreiros drogados, conhecidos como "hashishen" ou "haschichiyun" (consumidores de haxixe), de onde se diz que deriva a palavra "assassino".
O método de treino aplicado aos guerreiros de Hassan Sabbah, especialmente antes de serem enviados para missões assassinas, consistia em levá-los para uma espécie de jardim das delícias, com vinho, mel, música e jovens virgens à discrição, tudo envolto numa tremenda fumarada de ganza - com a promessa de que, se morressem no cumprimento da missão, teriam muito mais daquilo na outra vida.
Não têm a sensação de que já ouviram isto nalgum lado?

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Para ler antes de me fazer à rota

E o próximo será este.

Sugiro a leitura

Este já li. É belíssimo...

sexta-feira, 16 de abril de 2010

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Put your money where your mouth is, que é como quem diz: vens ou isso é só garganta?

Para mim esta viagem ainda é tão surreal como começou. Numa noite de copos no Bairro Alto pedi ao Tiago para que nunca mais fizessem uma viagem daquelas sem que me avisassem antes. Ele e o Alex já tinham ido, no espaço de pouco mais de um ano, à China e ao Perú. Assim como quem não quer a coisa. Olha que promoção tão boa: ‘bora? ‘bora! Com a Rota da Seda foi a mesma coisa. Noutra noite de copos surge nova conversa de ’bora? ‘bora! e, após dois dias vertiginosos de trocas de e-mails e transferências bancárias, recebo o bilhete electrónico da KLM exibindo locais tão improváveis como Teerão (chegada) e Almaty (regresso). Daí a três meses estes nomes seriam alguma coisa. Naquela altura foram um brinde à puta da ideia de ir para trás do sol posto.
As duas únicas reservas de imaginário que funcionaram naquele momento de entusiasmo etílico foram o império persa e as histórias de Marco Pólo e Gengis Khan. No dia seguinte já foi mais talibãs, Irão nuclear e geo-política bélica. Enfim, a típica angústia da ressaca às voltas com o choque das civilizações. No entanto, todas estas referências são incapazes de verdadeiramente explicar o que é aquele destino hoje. E essa é a beleza e a magia desta loucura: não fazer a mínima ideia do que vamos encontrar. Devem existir poucos locais neste mundo globalizado pela Internet e encolhido pelas low-cost que não despertem automaticamente uma ideia mais ou menos formatada. Este é um deles. Esse desconhecimento por colmatar, esse vazio por preencher é o que mais me entusiasma.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

quinta-feira, 8 de abril de 2010

O berço é uma bomba!

Não me canso de invocar a frase do Herberto Helder: "A ironia não salva, mas ressalva". Olhar para nós, para os outros e para o mundo através desta máxima é um exercício que serve tanto para manter uma certa sanidade mental, como para acentuar as cores e o calor do que é reflectido.
Ora, partindo desta premissa, o facto de a Ásia Central - o berço da civilização - atravessada pela Rota da Seda - a primeira linha de união dos dois lados do mundo (West meets East), a primeira verdadeira "auto-estrada" da informação, a génese das relações comerciais a nível mundial - ser também uma das zonas mais conturbadas da actualidade, só pode ser encarado com um sorriso sarcástico. O berço é uma bomba!
Não é que me espante que assim seja. Afinal, são milénios de cismas, guerras, jogos de interesses, manobras geo-políticas, aculturações mais ou menos forçadas, cisões de fé, início e fim de impérios, enfim, um sem número de razões que lançam bem fundo no tempo os alicerces da desconfiança. A tendência dos homens para complicar tudo fez o resto. O que verdadeiramente me espanta é que ainda hoje se levem a sério! Imaginar, por exemplo, que o presidente do Irão vai carregar num botãozinho vermelho e engolir o mundo num cogumelo nuclear é para mim uma ideia tão absurda como a paz no mundo. E não uso a comparação de forma leviana: acho verdadeiramente absurdo quando o ouço dizer, sejam aspirantes a misses mundo ou presidentes de super-potências. Nem 8 nem 80. O que seria a vida sem uns tabefes de vez em quando? Há que haver algum frisson, mas, caramba, a aniquilação total ultrapassa a ironia e entra no campo da estupidez pura e simples.

Resolvam lá isso e não nos lixem a Pamir Highway - Parte IV


Kyrgyz Opposition Group Says It Will Rule for 6 Months

“You can call this revolution. You can call this a people’s revolt. Either way, it is our way of saying that we want justice and democracy.”
Ainda há revoluções (populares) no Mundo! Não sei porquê isso reconforta-me.

Resolvam lá isso e não nos lixem a Pamir Highway - Parte III


O estado em que ficou o Parlamento

Resolvam lá isso e não nos lixem a Pamir Highway - Parte II

Resolvam lá isso e não nos lixem a Pamir Highway - Parte I

Governo do Quirguistão poderá já ter sido derrubado

terça-feira, 30 de março de 2010

Velinhas

Uns amigos meus garantiram-me que, se ficarmos presos numas masmorras talibãs, eles organizam uma vigília em nossa honra... com velinhas e tudo.

terça-feira, 23 de março de 2010